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segunda-feira, 15 de abril de 2013

Missionários Da Luz


No plano dos sonhos

Após alguns minutos de conversação encantadora, o Irmão Francisco acercou-se do orientador, indagando sobre os objetivos da reunião da noite.

– Sim – esclareceu Alexandre, afável –, teremos algum trabalho de esclarecimento geral a amigos nossos, relativamente a problemas de mediunidade e psiquismo, sem minúcias particulares.
– Se nos permite – tornou o interlocutor –, estimaria trazer alguns companheiros que colaboram frequentemente conosco.
Seria para nós grande satisfação vê-los aproveitando os minutos de sono físico.
– Sem dúvida. Destina-se o serviço de hoje à preparação de cooperadores nossos, ainda encarnados na Crosta. Estaremos à sua disposição e receberemos seus auxiliares com alegria.
Francisco agradeceu sensibilizado e perguntou:
– Poderemos providenciar?
– Imediatamente – explicou o instrutor, sem hesitação – conduza os amigos ao sítio de seu conhecimento.
Afastou-se o grupo de socorristas, deixando-me verdadeiro mundo de pensamentos novos. Segundo informações anteriores, Alexandre dirigiria, naquela noite, pequena assembleia de estudiosos e, assim que nos vimos a sós, explicou-me, solícito:
– Nosso núcleo de estudantes terrestres já possui certa expressão numérica; no entanto, faltam-lhe determinadas qualidades essenciais para funcionar com pleno proveito. Em vista disso, imprescindível dotar os companheiros de conhecimentos mais construtivos.
E, como julgasse útil fornecer-me informações pessoais destinadas a minha própria elucidação, acrescentou, gentilmente:
– E os irmãos que comparecem – indaguei, curioso – conservam a recordação integral dos serviços partilhados, de estudos levados a efeito e observações ouvidas?
Alexandre pensou um momento e considerou:
– Mais tarde, a experiência mostrará a você como é reduzida a capacidade sensorial. O homem eterno guarda a lembrança completa e conserva consigo todos os ensinamentos, intensificando-os e valorizando-os, de acordo com o estado evolutivo que lhe é próprio. O homem físico, entretanto, escravo de limitações necessárias, não pode ir tão longe. O cérebro de carne, pelas injunções da luta a que o Espírito foi chamado a viver, é aparelho de potencial reduzido, dependendo muito da iluminação de seu detentor, no que se refere à fixação de determinadas bênçãos divinas. Desse modo, André, o arquivo de semelhantes reminiscências, no livro temporário das células cerebrais, é muito diferente nos discípulos entre si, variando de alma para alma. Entretanto, cabe-me acrescentar que, na memória de todos os irmãos de boa vontade, permanecerá, de qualquer modo, o benefício, ainda mesmo que eles, no período de vigília, não consigam positivar a origem. As aulas, no teor daquela a que você assistirá nesta noite, são mensageiras de inexprimíveis utilidades práticas. Em despertando, na Crosta, depois delas, os aprendizes experimentam alívio, repouso e esperança, a par da aquisição de novos valores educativos. É certo que não podem reviver os pormenores, mas guardarão a essência, sentindo-se revigorados, de inexplicável maneira para eles, não só a retomar a luta diária no corpo físico, mas também a beneficiar o próximo e combater, com êxito, as próprias imperfeições. Seus pensamentos tornam-se mais claros, os sentimentos mais elevados e as preces mais respeitosas e produtivas, enriquecendo-se lhes as observações e trabalhos de cada dia.
– É lastimável – disse eu, valendo-me de pausa mais longa que todos os membros do grupo não possam frequentar, em massa, as instruções dessa natureza. Seria de extraordinária significação o ato de se congregarem mais de trezentas pessoas para os mesmos fins santificantes, recebendo, em conjunto, sublimes bênçãos de iluminação.
– Sem dúvida – redarguiu o orientador, no otimismo de sempre. – No entanto, não podemos violentar ninguém. Toda elevação representa uma subida e toda subida pede esforço de ascensão. Se os nossos amigos não se aproveitam da força que lhes é peculiar, se menosprezam os seus próprios direitos divinos, por olvidarem e por vezes detestarem os sagrados deveres que o Pai lhes confiou, como operar por eles, se constitui lei primordial da vida a realização divina e eterna para cada um de nós?
A observação era profunda e indiscutível.
Há esse tempo, defrontáramos vasto edifício que impressionava pelas linhas modestas, embora transbordantes de luz.
– Vamos agora ao trabalho! – convocou Alexandre, resoluto.
– Mas – objetei por minha vez – não se efetuarão as aulas, na sede do agrupamento onde se processam os serviços a seu cargo?
– Se o trabalho – respondeu ele, atencioso – fosse puramente consagrado às entidades libertas do corpo material, poderíamos desenvolver os nossos esforços, ali mesmo, com o maior êxito, mas, no presente caso, devemos atender a irmãos ainda encarnados, que vêm até nós em condições especialíssimas, e precisamos aproveitar os recursos magnéticos dos amigos que ainda se encontram igualmente em luta na Terra.
E chegados diante da porta de entrada, onde se movimentava grande número de companheiros de nosso plano, o instrutor explicou:
– Temos aqui uma nobre instituição espiritista, a serviço dos necessitados, dos tristes, dos sofredores. O sagrado espírito de família evangélica permanece vivo nesta casa de amor cristão que o Espiritismo ergueu, por intermédio de uma venerável missionária do Cristo. Nossos trabalhos se desdobrarão aqui com mais eficiência, relativamente aos fins a que se destinam.
– Como é interessante – acentuei – o fato de necessitarmos dos ambientes domésticos para instruções aos companheiros encarnados!
– Sim – comentou Alexandre, com elevada sabedoria –, você não pode esquecer que grandes ensinamentos do próprio Mestre foram ministrados no seio da família. A primeira instituição visível do Cristianismo foi o lar pobre de Simão Pedro, em Cafarnaum. Uma das primeiras manifestações de Nosso Senhor, diante do povo, foi a multiplicação das alegrias familiares, numa festa de núpcias em pleno aconchego do lar. Muitas vezes visitou Jesus as casas residenciais de pecadores confessos, acendendo novas luzes nos corações. A última reunião com os discípulos verificou-se no cenáculo doméstico. O primeiro núcleo de serviço cristão em Jerusalém foi ainda a moradia simples de Pedro, então transformado em baluarte inexpugnável da nova fé. Inegavelmente, todo templo de pedra, dignamente superintendido, funciona qual farol no seio das sombras, indicando os caminhos retos aos navegantes do mundo, mas não podemos esquecer que o movimento vital das ideias e realizações baseia-se na igreja viva do espírito, no coração do povo de Deus. Sem adesão do sentimento popular, na esfera da crença vivida no âmago de cada um, qualquer manifestação religiosa reduz-se a mero culto externo. Por isso mesmo.
André, no futuro da Humanidade, os templos materiais do Cristianismo estarão transformados em igrejas-escolas, igrejas orfanatos, igrejas-hospitais, onde não somente o sacerdote da fé veicule a palavra de interpretação, mas onde a criança encontre arrimo e esclarecimento, o jovem a preparação necessária para as realizações dignas do caráter e do sentimento, o doente o remédio salutar, o ignorante a luz, o velho o amparo e a esperança. O Espiritismo evangélico é também o grande restaurador das antigas igrejas apostólicas, amorosas e trabalhadoras. Seus intérpretes fiéis serão auxiliares preciosos na transformação dos parlamentos teológicos em academias de espiritualidade, das catedrais de pedra em lares acolhedores de Jesus.
Daria tudo o que estivesse ao meu alcance para continuar ouvindo as encantadoras elucidações do orientador, mas, nesse instante, transpúnhamos o limiar.
Verifiquei que faltavam apenas cinco minutos para duas horas da madrugada.
Pelo grande número de entidades que vieram céleres ao nosso encontro, percebi que havia enorme interesse em torno da palestra instrutiva da noite. Não se achavam presentes apenas os aprendizes ligados ao esforço de Alexandre, em sentido direto, mas também outros amigos, trazidos até ali por afeiçoados do plano espiritual.
Acercou-se de nós, com mais intimidade, pequeno grupo de companheiros, destacando-se um deles que conversou com Alexandre, de maneira mais significativa.
– Ainda não chegaram todos? – indagou o instrutor, com interesse afetivo, após trocarem as primeiras impressões.
Percebi claramente que se referia aos irmãos encarnados que deveriam comparecer na cota de frequência do grupo de que era ele um dos diretores espirituais.
– Faltam-nos apenas dois companheiros – elucidou o interpelado. – Até o momento, Vieira e Marcondes ainda não chegaram.
– Urge iniciar os trabalhos – exclamou Alexandre, sem afetação – devemos terminar a tarefa às quatro horas no máximo.
E, mostrando singular interesse de amigo, acrescentou:
– Quem sabe se foram vítimas de algum acidente? Convém positivar no espírito de calma decisão que lhe é característico, recomendou ao auxiliar que lhe prestava informações:
– Sertório, enquanto vou ultimar algumas providências para as instruções da noite, observe o que se passa.
Respeitoso, o subordinado interrogou:
– Caso estejam os nossos irmãos sob a influência de entidades criminosas, como devo proceder?
– Deixá-los-á, então, onde estiverem – replicou o instrutor, resoluto –; o momento não comporta grandes conversações com os que se prendem, deliberadamente, ao plano inferior. Findo o trabalho, você mesmo providenciará os recursos que se façam necessários.
Dispunha-se o mensageiro a partir, quando o orientador, percebendo-me o ardente interesse em acompanhá-lo, acrescentou:
– Se deseja, André, poderá seguir, colaborando com o emissário em serviço, Sertório terá prazer em sua companhia.
Agradeci extremamente satisfeito e abracei o auxiliar de Alexandre, que me sorriu acolhedoramente.
Saímos.
Era indispensável atender o mandado com presteza; todavia, satisfazendo-me a curiosidade, Sertório explicou, generoso:
– Quando encarnados, na Crosta, não temos bastante consciência dos serviços realizados durante o sono físico; contudo, esses trabalhos são inexprimíveis e imensos. Se todos os homens prezassem seriamente o valor da preparação espiritual, diante de semelhante gênero de tarefa, certo efetuariam as conquistas mais brilhantes, nos domínios psíquicos, ainda mesmo quando ligados aos envoltórios inferiores. Infelizmente, porém, a maioria se vale, inconscientemente, do repouso noturno para sair à caça de emoções frívolas ou menos dignas. Relaxam-se as defesas próprias, e certos impulsos, longamente sopitados durante a vigília, extravasam em todas as direções, por falta de educação espiritual, verdadeiramente sentida e vivida.
Interessado em esclarecimentos completos. Indaguei:
– Entretanto, isto ocorre com aprendizes de cursos avançados do Espiritualismo? Poderiam ser vítimas desses enganos alunos de um instrutor da ordem de Alexandre?
– Como não? – tornou Sertório, fraternalmente. – Com referência a essa probabilidade, não tenha qualquer dúvida. Quantos pregam a Verdade, sem aderirem intimamente a ela? Quantos repetem fórmulas de esperança e paz, desesperando e perseguindo, no fundo do coração? Há sempre muitos “chamados” em todos os setores de construção e aprimoramento do mundo! Os “escolhidos”, contudo, são sempre poucos.
Completando o pensamento, como a escoimá-lo de qualquer falsa noção de particularismos na obra divina, Sertório acrescentou:
– E precisamos reajustar nossas definições sobre os “escolhidos”. Os companheiros assim classificados não são especialmente favorecidos pela graça divina, que é sempre a mesma fonte de bênçãos para todos. Sabemos que a “escolha”, em qualquer trabalho construtivo, não exclui a “qualidade”, e se o homem não oferece qualidade superior para o serviço divino, em hipótese alguma deve esperar a distinção da escolha. Infere-se, pois, que Deus chama todos os filhos à cooperação em sua obra augusta, mas somente os devotados, persistentes, operosos e fiéis constroem qualidades eternas que os tornam dignos de grandes tarefas. E, reconhecendo-se que as qualidades são frutos de construções nossas, nunca poderemos esquecer que a escolha divina começará pelo esforço de cada um.
A tese do companheiro era assaz interessante e educativa, mas havíamos atingido pequeno edifício, em frente do qual Sertório se deteve e falou:
– É a residência de Vieira. Vejamos o que se passa.
Acompanhei-o em silêncio.
Em poucos instantes, encontrávamo-nos dentro de quarto confortável, onde dormia um homem idoso, fazendo ruído singular. Via-se-lhe, perfeitamente, o corpo perispirítico unido à forma física, embora parcialmente desligados entre si. Ao seu lado, permanecia uma entidade singular, trajando vestes absolutamente negras. Notei que o companheiro adormecido permanecia sob impressões de doloroso pavor. Gritos agudos escapavam-lhe da garganta. Sufocava-se, angustiadamente, enquanto a entidade escura fazia gestos que eu não conseguia compreender.
Sertório acercou-se de mim e observou:
– Vieira está sofrendo um pesadelo cruel.
E indicando a entidade estranha:
– Creio que ele terá atraído até aqui o visitante que o espanta.
Com efeito, muito delicadamente, o meu interlocutor começou a dialogar com a entidade de luto:
– O amigo é parente do companheiro que dorme?
– Não, não. Somos conhecidos velhos.
E muito impaciente, acentuou:  
– Hoje, à noite, Vieira me chamou com as suas reiteradas lembranças e acusou-me de faltas que não cometi, conversando levianamente com a família. Isso, como é natural, desgostou-me.
Não bastará o que tenho sofrido, depois da morte? Ainda precisarei ouvir falsos testemunhos de amigos maledicentes? Não poderia esperar dele semelhante procedimento, em virtude das relações afetivas que nos uniam as famílias, desde alguns anos. Vieira foi sempre pessoa de minha confiança. Em razão da surpresa, deliberei esperá-lo nos momentos de sono, a fim de prestar-lhe os necessários esclarecimentos.
O estranho visitante. Todavia, fez uma pausa, sorriu irônico, e continuou:
– Entretanto, desde o momento em que me pus a explicar-lhe a situação do passado, informando-o quanto aos verdadeiros móveis de minhas iniciativas e resoluções na vida carnal, para que não prossiga caluniando-me o nome, embora sem intenção, Vieira fez este rosto de pavor que estão vendo e parece não desejar ouvir as minhas verdades.
Interessado nas lições novas, aproximei-me do amigo, cujo corpo descansava em posição horizontal, e senti-lhe o suor frio ensopando os lençóis. Não revelava compreender convenientemente o auxílio que lhe era trazido, fixando-nos com estranheza e ansiedade, intensificando, ainda mais, os gemidos gritantes que lhe escapavam da boca.
Sentindo a silenciosa reprovação de Sertório, o habitante das zonas inferiores dirigiu-lhe a palavra de modo especial:
– O senhor admite que devamos ouvir impassíveis os remoques da leviandade? Não será passível de censura e punição o amigo infiel que se vale das imposições da morte para caluniar e deprimir? Se Vieira sentiu-se no direito de acusar-me, desconhecendo certas particularidades dos problemas de minha vida privada, não é justo que me tolere os esclarecimentos até ao fim? Não sabe ele, acaso que os mortos continuam vivos? Ignorará, porventura, que a memória de cada companheiro deve ser sagrada? Ora esta! Eu mesmo já lhe ouvi, em minha nova condição de desencarnado, longas dissertações referentes ao respeito que devemos uns aos outros... Não considera, pois, que tenho motivos justos para exigir um legítimo entendimento?
O interpelado esboçou um gesto de complacência e observou:
– Talvez esteja com a razão, meu caro. Entretanto, creio deva desculpar seu amigo! Como exigir dos outros conduta rigorosamente correta, se ainda não somos criaturas irrepreensíveis? Tenha calma, sejamos caridosos uns para com os outros!...
E, enquanto a entidade se punha a meditar nas palavras ouvidas. Sertório falou-me em tom discreto:
– Vieira não poderá comparecer esta noite aos trabalhos.
Não pude reprimir a má impressão que a cena me causava e, talvez porque eu fizesse um olhar suplicante, advogando a causa do pobre irmão, quase a desencarnar-se de medo, o auxiliar de Alexandre prosseguiu:
– Retirar violentamente a visita, cuja presença ele próprio propiciou, não é tarefa compatível com as minhas possibilidades do momento. Mas podemos socorrê-lo, acordando-o.
E, sem pestanejar, sacudiu o adormecido, energicamente, gritando-lhe o nome com força.
Vieira despertou confuso, estremunhando, sob enorme fadiga, e ouvi-o exclamar, palidíssimo:
– Graças a Deus, acordei! Que pesadelo terrível!... Será crível que eu tenha lutado com o fantasma do velho Barbosa? Não! Não posso acreditar!...
Não nos viu, nem identificou a presença da entidade enlutada, que ali permaneceu até não sei quando. E, ao retirarmo-nos, ainda lhe notei as interrogações íntimas, indagando de si mesmo sobre o que teria ingerido ao jantar, tentando justificar o susto cruel com pretextos de origem fisiológica. Longe de auscultar a própria consciência, com respeito à maledicência e à leviandade, procurava materializar a lição no próprio estômago, buscando furtar-se à realidade.
Sertório, porém, não me proporcionou ensejo a maiores reflexões. Convocando-me ao dever imediato, acrescentou:
– Visitemos o Marcondes. Não temos tempo a perder.
Daí a dois minutos, penetrávamos outro apartamento privado; todavia, o quadro agora era muito mais triste e constrangedor.
Marcondes estava, de fato, ali mesmo, parcialmente desligado do corpo físico, que descansava com bonita aparência, sob as colchas rendadas. Não se encontrava ele sob impressões de pavor, como acontecia ao primeiro visitado; entretanto, revelava a posição de relaxamento, característica dos viciados do ópio. Ao seu lado, três entidades femininas de galhofeira expressão permaneciam em atitude menos edificante.
Vendo-nos, de súbito, o dono do apartamento surpreendeu-se, de maneira indisfarçável, mormente em fixando Sertório, que era de seu mais antigo conhecimento. Levantou-se, envergonhado, e ensaiou algumas explicações com dificuldade:
– Meu amigo – começou a dizer, dirigindo-se ao auxiliar de Alexandre –, já sei que vem procurar-me... Não sei como esclarecer o que ocorre...
Não pôde, contudo, prosseguir e mergulhou a cabeça nas mãos, como se desejasse esconder-se de si mesmo.
A essa altura da cena constrangedora, verifiquei, então, sem vislumbres de dúvida, que as entidades visitantes eram da pior espécie, de quantas conhecia eu nas regiões das sombras.
Irritadas talvez com o recuo do companheiro, que se revelava triste e humilhado, prorromperam em grande algazarra, acercando-se mais intensamente de nós, sem o mínimo respeito.
– Impossível que nos arrebatem Marcondes! – disse uma delas, enfaticamente, – Afinal de contas, vim de muito longe para perder meu tempo assim, sem mais nem menos!
– Ele mesmo nos chamou para a noite de hoje – exclamou a segunda, atrevidamente – e não se afastará de modo algum.
Sertório ouvia com serenidade, evidenciando íntima compaixão.
A terceira entidade, que parecia reter instintos inferiores mais completos, aproximou-se de nós com terrível expressão de sarcasmo e falou, dando-me a entender que aquela não era a primeira vez que Sertório procurava o sitio para os mesmos fins e nas mesmas circunstâncias:
– Os senhores não passam de intrusos. Marcondes é fraco, deixando-se impressionar pela presença de ambos. Nós, todavia, faremos a reação. Não conseguirão arrancar-nos o predileto.
E gargalhando, irônica, acentuava:
– Também temos um curso de prazer. Marcondes não se afastará.
Contrariamente aos meus impulsos, Sertório não demonstrava a mínima atenção. As palavras e expressões daquela criatura, porém, irritavam-me.
Ao meu lado, o auxiliar de Alexandre mantinha-se extremamente bondoso. A própria vítima permanecia humilde e triste.
Porque semelhantes insultos? Ia responder alguma coisa, no sentido de esclarecer o caso em termos precisos, quando Sertório me deteve:
– André, contenha-se! Um minuto de conversação atenciosa com as tentações provocadoras do plano inferior pode induzir-nos a perder um século.
Em seguida, com invejável tranquilidade, dirigiu-se ao interessado, perguntando, sem espírito de censura:
– Marcondes, que contas darei hoje de você, meu amigo?
O interpelado respondeu, lacrimoso e humilhado:
– Oh, Sertório, como é difícil manter o coração nos caminhos retos! Perdoe-me... Não sei como isto aconteceu... Não posso explicar-me!
Mas Sertório parecia pouco disposto a cultivar lamentações e mostrando-se muito interessado em aproveitar o tempo, interrompeu-o:
– Sim. Marcondes. Cada qual escolhe as companhias que prefere. Futuramente você compreenderá que somos seus amigos leais e que lhe desejamos todo o bem.
Despejaram as mulheres nova série de frases ridicularizadoras. Marcondes começou, de novo, a lastimar-se, mas o mensageiro de Alexandre, sem hesitar, tomou-me a destra e regressamos à via pública.
– Voltemos imediatamente – disse ele, decidido.
– E em que ficamos? – indaguei – não vai acordá-lo?
– Não. Não podemos agir aqui do mesmo modo. Marcondes deve demorar-se em tal situação, para que amanhã a lembrança desagradável seja mais duradoura, fortificando lhe a repugnância pelo mal.
– Que fazer, então? – perguntei, espantado.
– Diremos ao nosso orientador o que ocorre – redarguiu Sertório, calmamente – é o que nos cabe levar a efeito.
E, sintetizando longas considerações que poderia expender relativamente ao assunto, frisou:
– Por agora, André, chama-nos o dever mais alto, no campo de nossa jornada para Deus. Entretanto, quando terminarem as instruções da noite, voltarei a ver o que é possível efetuar em favor de nossos pobres amigos. No momento, não devemos perder os minutos. As preleções de Alexandre não se destinam somente ao preparo dos nossos irmãos que ainda se ligam aos envoltórios de carne, na superfície da Crosta; são igualmente valiosas para nós outros, que necessitamos enriquecer possibilidades para socorrer, com êxito, os companheiros encarnados.
– Sim, concordo – respondi. – No entanto, a situação de Vieira e Marcondes sensibiliza-me fundamente.
Sertório, porém, cortou-me a palavra, rematando, seguro de si mesmo:
– Conserve seu sentimento, que é sagrado; não se arrisque, porém, a sentimentalismo doentio. Esteja tranquilo quanto à assistência, que não lhes faltará no momento oportuno; não se esqueça, porém, de que, se eles mesmos algemaram o coração em semelhantes cárceres, é natural que adquiram alguma experiência  proveitosa à custa do próprio desapontamento.  

Missionários Da Luz
Autor: André Luiz  
Psicografia: Francisco Cândido Xavier

 

segunda-feira, 1 de abril de 2013

O Problema Do Ser, Do Destino E Da Dor - Léon Denis


A alma e os diferentes estados do sono


O estudo do sono fornece-nos indicações de grande importância sobre a natureza da personalidade. Em geral não se aprofunda muito o mistério do sono. O exame atento desse  fenômeno, o estudo da alma e da sua forma fluídica  durante a parte da existência que consagramos ao descanso, conduzir-nos-ão a uma compreensão mais alta das condições do ser na vida do Além.
O sono possui não só propriedades restauradoras que a Ciência não pôs no devido relevo, mas também um poder de coordenação e centralização sobre o organismo material. Pode, além disso, acabamos de o ver, provocar uma ampliação considerável das percepções psíquicas, maior intensidade do raciocínio e da memória.
Que é então o sono?
É simplesmente o desprendimento da alma, que sai do corpo.
Diz-se: o sono é irmão da morte. Essas palavras exprimem uma verdade profunda. Sequestrada na carne no estado de vigília, a alma recupera, durante o sono, a sua liberdade relativa, temporária, e ao mesmo tempo o uso dos seus poderes ocultos. A morte será a sua libertação completa, definitiva.
Já nos sonhos, vemos os sentidos da alma, esses sentidos psíquicos, dos quais os do corpo são a manifestação externa e amortecida, entrar em ação 54*.  A visão ocular é mais que a manifestação externa da faculdade visual, que tem a sua expressão mais ampla na visão interna. A visão interior exterioriza-se e traduz-se pela ação dos sentidos, tanto na física como na psíquica. No primeiro caso órgão terminal pertence ao corpo material: no outro caso são os órgãos do corpo fluídico. A visão no sonho é acompanhada de uma luz especial, constante, diferente da luz do dia.
À medida que as percepções externas se enfraquecem e apagam, quando os olhos estão fechados e suspenso o ouvido, outros meios mais poderosos despertam nas profundezas do ser. Vemos e ouvimos com os sentidos internos. Imagens, formas, cenas à distância sucedem-se e desenrolam-se; travam-se conversas com pessoas vivas ou falecidas. Esse movimento, muitas vezes incoerente e confuso no sono natural, adquire precisão e aumenta com o desprendimento da alma no sono provocado, no transe de sonambulismo e no êxtase. Às vezes, a alma afasta-se durante o descanso do corpo e são as impressões das suas viagens, os resultados das suas indagações, das suas observações, que se traduzem pelo sonho.
Nesse estado, um laço fluídico ainda a liga ao organismo material e, por esse vínculo sutil, espécie de fio  condutor, as impressões e as vontades da alma podem transmitir-se ao cérebro. É pelo mesmo processo que, nas outras formas do sono, a alma governa o seu invólucro terrestre, fiscaliza-o, dirige-o.
Essa direção, no estado de vigília, durante a incorporação, exercita-se de dentro para fora; efetuar-se-á em sentido inverso nos diferentes estados de desprendimento. A alma, emancipada, continuará a influenciar o corpo mediante o laço fluídico que continuamente liga um à outra. Desde esse momento,  no seu poder psíquico reconstituído, a alma exercerá sobre o organismo carnal uma direção mais eficaz e segura. A marcha dos sonâmbulos à noite, em lugares perigosos e com inteira segurança, é uma demonstração evidente desse fato.
Sucede o mesmo com a ação terapêutica provocada pela sugestão. Esta é eficaz, principalmente no sentido de facilitar o desprendimento da alma e dar-lhe o poder absoluto de fiscalização, a liberdade necessária para dirigir a força vital acumulada no perispírito e, por esse meio, restaurar as perdas sofridas pelo corpo físico 55*. O espírito exteriorizado pode tirar do organismo mais força vital do que o homem normal, o homem encarnado, pode obter. Foi demonstrado por experiências que um espírito pode, através do organismo, exercer maior pressão num dinamômetro do que o espírito encarnado.
Comprovamos esse fato nos casos de personalidade dupla. A segunda personalidade, mais  completa, mais integral que a personalidade normal, substitui-a para um fim curativo, por meio de uma sugestão exterior, aceita e transformada em auto sugestão pelo Espírito do  sujet. Com efeito, este nunca abandona os seus direitos e poderes de fiscalização. Assim, como disse Myers, “não é a ordem do hipnotizador, mas antes a faculdade do paciente que forma o nó da questão” 56*. F.Myers – La Personalité Humaine, pag.204.
O sábio professor de Cambridge disse mais 57*:Idem, pag. 187.
 “O fim único de todos os processos hipnogênicos é dar energia à vida; é alcançar mais rápida e completamente resultados que a vida abandonada a si mesma só realiza lentamente e de forma incompleta.” Por outros termos, o hipnotismo é a aplicação, num grau mais intenso, das energias reparadoras que entram em jogo no sono natural. A sugestão terapêutica é a arte de libertar o Espírito do corpo, de abrir-lhe uma saída pelo sono e permitir-lhe que exerça com plenitude os seus poderes sobre o corpo doente. As pessoas sugestionáveis são aquelas cujas almas indolentes ou que pouco têm evolvido não estão aptas para desprenderem-se por si mesmas e agir utilmente no sono ordinário para restaurar as perdas do organismo.
A sugestão em si mesma não é, pois, mais do que um pensamento, um ato da vontade, diferindo somente da vontade ordinária por sua concentração e intensidade. Em geral, os nossos pensamentos são múltiplos e hesitantes. Nascem e passam ou, então, quando coexistam em nós, chocam-se e confundem-se.
Na sugestão, o pensamento e a vontade fixam-se num  ponto único. Ganham em poder o que perdem em extensão. Por sua ação, que se torna mais penetrante, mais incisiva, provocam no sujet o despertar de faculdades não utilizadas no estado normal. A sugestão torna-se, então, uma espécie de impulso, de alavanca que mobiliza a força vital e dirige-a para o ponto onde ela tem de operar.
A sugestão pode exercer-se tanto na ordem física, por uma influência direta sobre o sistema nervoso, quanto na ordem moral, sobre o “eu” central e a consciência do  sujet. Bem empregada, constitui ela um meio muito apreciável de educação, destruindo as tendências ruins e os hábitos perniciosos. A sua influência sobre o caráter produz, então, os mais felizes resultados 58*.Em resumo, os frutos que a sugestão hipnótica pode e deve proporcionar e em vista dos quais e deve aplicar, são estes: concentração do pensamento e da vontade, aumento de energia e vitalidade, atenção fixa em coisas essencialmente úteis, alargamento do campo da memória, manifestação de sentidos novos por meio de impulsões internas ou externas.
Voltemos ao sono ordinário e ao sonho. Enquanto o desprendimento da alma é incompleto, as sensações,  as preocupações da vigília e as recordações do passado misturam-se com as impressões da noite. As percepções registradas pelo cérebro desenrolam-se automaticamente, em desordem aparente, quando a atenção da alma está desviada do corpo e deixa de regular as vibrações cerebrais. Daí a incoerência da maior parte dos sonhos; mas, à medida que a alma se desprende e se eleva, a ação dos sentidos psíquicos torna-se predominante e os sonhos adquirem lucidez e nitidez notáveis. Clareiras cada vez mais largas, vastas perspectivas abrem-se no mundo espiritual, verdadeiro domínio da alma e lugar do seu destino. Nesse estado ela pode penetrar as coisas ocultas e até os pensamentos e os sentimentos de outros Espíritos 59*. Segundo os antigos, existem duas espécies de sonhos: o propriamente dito em grego, “onar”, é de origem física, e o sonho “repar”,de origem psíquica. Encontra-se essa distinção em Homero, que representa a tradição popular, assim como em Hipócrates, que é representada na tradição científica. Muitos ocultistas modernos adotaram definições análogas. Em tese geral, segundo eles dizem, o sonho propriamente dito seria um sonho produzido mecanicamente pelo organismo, e o sonho psíquico, um produto da clarividência adivinhadora; ilusório um, verídico o outro. É, porém, às vezes, muito difícil estabelecer uma limitação nítida e distinta entre essas duas classes de fenômenos. O sonho vulgar parece devido à vibração cerebral automática, que continua a produzir-se no sono, quando a alma está ausente. Estes sonhos são muitas vezes absurdos; mas este mesmo absurdo é uma prova de a alma está fora do corpo físico e deixou de regular-lhe as funções. Com menos facilidade nos lembramos do sonho psíquico, porque não impressiona o cérebro físico, mas somente o corpo psíquico, veículo da alma que está exteriorizada no sono.
“Os sentidos”, diz Pascal, depois da atividade do dia, já não  produzem sensações tão vivas e, como é a energia destas sensações que tem a consciência concentrada no cérebro, esta consciência, quando os sentidos adormecem, escapa-se para fora do corpo físico e fixa-se no corpo psíquico.”
O sonho lúcido representa o conjunto das impressões recolhidas pela alma no estado de liberdade e transmitidas ao cérebro, quer no decurso das suas migrações, quer no momento de despertar. Poder-se-ia distingui-lo do sonho vulgar ou automático pelo fato de não causar nenhuma fadiga, contrariamente ao que sucede com a atividade cerebral da vigília.
Há em nós uma dupla vista, pela qual pertencemos, ao mesmo tempo, a dois mundos, a dois planos de existência. Uma está em relação com o tempo e o espaço, como nós os concebemos em nosso meio planetário com os sentidos do corpo: é a vida material; a outra, mediante os sentidos profundos e as faculdades da alma, liga-nos ao universo espiritual e aos mundos infinitos.
No decurso da nossa existência terrestre, é principalmente quando dormimos que essas faculdades podem exercer-se e entrar em vibração as potências da alma. Esta torna a pôr-se em contato com o universo invisível, que é a sua pátria e do qual estava separada pela carne. Retempera-se no seio das energias eternas para continuar, quando desperta, a sua tarefa penosa e obscura.
Durante o sono a alma pode, segundo as necessidades do momento, aplicar-se a reparar as perdas vitais causadas pelo trabalho cotidiano e regenerar o organismo adormecido, infundindo-lhe as forças tiradas do mundo cósmico, ou, quando está acabado esse movimento reparador, continuar o curso da sua vida superior, pairar sobre a Natureza, exercer as suas faculdades de visão à distância e penetração das coisas. Nesse estado de atividade independente vive já antecipadamente a vida livre do Espírito; porque essa vida, que é uma continuação natural da existência planetária, espera-a depois da morte, devendo a alma prepará-la não somente com as suas obras terrestres, mas também com as suas ocupações quando desprendida durante o sono. É graças ao reflexo da luz do Alto, que cintila em nossos sonhos e ilumina completamente o lado oculto do destino, que podemos entrever as condições do ser no Além.
Se nos fosse possível abranger com o olhar toda a extensão de nossa existência, reconheceríamos que o estado de vigília está longe de constituir lhe a fase essencial, o elemento mais importante. As almas que de nós cuidam servem-se do nosso sono para exercitar-nos na vida fluídica e no desenvolvimento dos nossos sentidos de intuição. Efetua-se, então,  um trabalho completo de iniciação para os homens ávidos de se elevarem.
Os vestígios desse trabalho encontram-se nos sonhos. Assim, quando voamos, quando deslizamos com rapidez pela superfície do solo, significa isso a sensação do corpo fluídico, ensaiando-se para a vida superior.
Sonhar que subimos sem cansaço, com facilidade surpreendente, através do espaço, sem embaraço nem medo, ou então que estamos pairando por cima das águas; atravessar paredes e outros obstáculos materiais sem ficarmos admirados de praticar atos que são impossíveis enquanto estamos  acordados, não é a prova de que nos tornamos fluídicos pelo desprendimento? Tais sensações, tais imagens, que comportam completa inversão das leis físicas que regem a vida comum, não poderiam vir ao nosso espírito, se não fossem o resultado de uma transformação do nosso modo de existência.
Na realidade, já não se trata aqui de sonhos, mas de ações reais praticadas em outro domínio da sensação e cuja lembrança se insinuou na memória cerebral. Essas lembranças e impressões no-lo demonstram bem. Possuímos dois corpos, e a alma, sede da consciência, fica ligada ao seu invólucro sutil, enquanto o corpo material está deitado e em completa inércia.
Apontemos, todavia, uma dificuldade. Quanto mais a alma se afasta do corpo e penetra nas regiões etéreas, tanto mais fraco é o laço que os une, tanto mais vaga a lembrança ao acordar. A alma paira muito longe na imensidade e o cérebro deixa de registrar as suas sensações. Daí resulta não podermos analisar os nossos mais belos sonhos. Algumas vezes, a última das impressões sentidas no decurso dessas peregrinações noturnas subsiste ao despertar.
E se, nesse momento, tivermos o cuidado de fixá-la fortemente na memória, pode ficar lá gravada. Tive, uma noite, a sensação de vibrações percebidas no espaço, as últimas notas de uma melodia suave e penetrante, e a lembrança das derradeiras palavras de um cântico que findava assim: “Há céus inumeráveis!”
Às vezes sentimos, ao acordar, a vaga impressão de poderosas coisas entrevistas, sem nenhuma lembrança determinada. Essa espécie de intuição, resultante de percepções registradas na consciência profunda, mas não na consciência cerebral, persiste em nós durante certo tempo e influencia os nossos atos. Outras vezes, essas impressões traduzem-se nitidamente no sonho. Eis o que a respeito diz Myers 60*: F. Myers – La Personalité Humaine, pag. 117.
 “O resultado permanente de um sonho é muitas vezes de tal ordem que nos mostra claramente que o sonho não é o efeito de uma simples confusão com lembranças avivadas da  vida passada, mas que possui um poder inexplicável que lhe é próprio e que ele tira, semelhante nisso à sugestão hipnótica, das profundezas da nossa existência, a que a vida de vigília é incapaz de chegar. Desse gênero, dois grupos de casos há que, pela clareza com que se patenteiam, facilmente podem ser reconhecidos; um deles, principalmente, em que o sonho acabou por uma transformação religiosa decidida, e  o outro em que o sonho foi o ponto de partida de uma ideia obsidente ou de um acesso de verdadeira loucura.”
Esses fenômenos poderiam explicar-se pela comunicação, no sonho, da consciência superior com a consciência normal, ou pela intervenção de alguma Inteligência elevada que julga, reprova, condena o proceder do sonhador, ocasionando-lhe perturbação e um salutar receio. A obsessão pode também exercer-se por meio do sonho até a ponto de causar perturbação mental ao despertar. Terá como autores Espíritos malfazejos, a quem o nosso procedimento no passado e os danos que lhes causamos deram domínio sobre nós. Insistimos também na propriedade misteriosa que tem o sono de fazer-nos senhores, em certos casos, de camadas  mais extensas da memória.
A memória normal é precária e restrita, não vai além do círculo estreito da vida presente, do conjunto dos  fatos, cujo conhecimento é indispensável por causa do papel que se tem de desempenhar na Terra e do fim que se deve alcançar. A memória profunda abrange toda a história do ser desde a sua origem, os seus estádios sucessivos, os seus modos de existência, planetários ou celestes. Um passado inteiro, feito de recordações e sensações, esquecido, ignorado no estado de vigília, está gravado em nós. Esse passado só desperta quando o Espírito se exterioriza durante o sono natural ou provocado. Uma regra conhecida de todos os experimentadores é que, nos diferentes estados do sono, à medida que se vai ficando a maior distância do estado de vigília e da memória normal, tanto mais a hipnose é profunda, tanto mais se acentua a expansão, a dilatação da memória. Myers confirma o fato nos seguintes termos 61* : F.Myers – Obra citada, págs. 121 e 122
“A memória mais distanciada da vida de vigília é a  que mais vasto alcance tem, é a que mais profundo poder exerce sobre as impressões acumuladas no organismo. Por mais inexplicável que esse fenômeno se tenha apresentado aos observadores, que com ele depararam sem possuírem a decifração do enigma, é certo que as observações independentes de centenas de médicos e de hipnotizadores atestam a sua realidade. O exemplo mais comum é fornecido pelo sono hipnótico ordinário. O grau de inteligência que se manifesta no sono varia segundo os sujets e as épocas; mas todas as vezes que esse grau é suficiente para autorizar um juízo, achamos que existe durante o sono hipnótico  a memória considerável, que não é necessariamente uma memória completa ou razoável do estado de vigília; ao passo que na maior parte dos sujets acordados, salvo o caso de uma injunção especial dirigida ao “eu” hipnótico, nenhuma lembrança existe que se relacione com o estado de sono.
O sono ordinário pode ser considerado como ocupando uma posição que está entre a vida acordada e o sono hipnótico profundo; e parece provável que a memória pertencente ao sono ordinário liga-se, por um lado, à que pertence à vida de vigília e, pelo outro, à que existe no sono hipnótico. Realmente assim é, estando os fragmentos da memória do sono ordinário intercalados nas duas cadeias.” Myers, em apoio às suas palavras, cita 62*F.Myers - Obra citada, págs. 123 e 124. vários casos em que fatos retrospectivos esquecidos, e outros dos quais o que dorme nunca teve conhecimento, se revelam no sonho.
As experiências a que se refere Myers (vê-las-emos  quando tratarmos da questão das reencarnações) foram levadas muito mais longe do que ele o previa, e as consequências  que daí provêm são imensas. Não só tem sido possível, pela  sugestão hipnótica, reconstituir as menores recordações da vida atual, desaparecidas da memória normal dos sujets, mas também reatar o encadeamento das suas vidas passadas, já interrompido.
Ao mesmo tempo em que uma memória mais vasta e mais rica, vemos aparecer no sono faculdades que são muito superiores a todas as que desfrutamos no estado de  vigília.
Problemas estudados em vão, abandonados como insolúveis, são resolvidos no sonho ou no sonambulismo; obras geniais, operações estéticas da ordem mais elevada, poemas, sinfonias e hinos fúnebres são concebidos e executados. Há em tudo isso uma obra exclusiva do “eu” superior ou a colaboração de entidades espirituais que vêm inspirar os nossos trabalhos? É provável que esses dois fatores intervenham nos fenômenos dessa ordem.
Myers cita o caso de Agassiz descobrindo, enquanto dormia, o arranjo esquelético de ossadas dispersas que ele  tentara, por várias vezes e sem resultado, acertar durante a vigília.
Lembraremos os casos de Voltaire, La Fontaine, Coleridge, S. Bach, Tartini, etc., executando obras importantes em condições análogas 63*.Ver no Invisível, Cap.XII.
Finalmente, importa mencionar uma forma de sonhos cuja explicação escapou até agora à Ciência. São os  sonhos premonitórios, complexo de imagens e visões que se referem a acontecimentos futuros e cuja exatidão é ulteriormente verificada. Parecem indicar que a alma tem o poder de penetrar o futuro ou que este lhe é revelado por inteligências superiores.
Assinalemos o sonho da Duquesa de Hamilton, que viu com antecipação de quinze dias a morte do Conde de L... com particularidades de natureza íntima que acompanharam esse acontecimento 64* . Proceedings, S.P.R.,XI, pag.505.
Um fato da mesma natureza foi publicado pelo Progressive
Thinker de Chicago, a 1.° de novembro de 1913. Um magistrado de Hauser, M. Reed, morreu imediatamente, em consequência de uma guinada do automóvel em que viajava. Seu filho, de 10 anos de idade, tinha tido, por duas vezes seguidas, a visão dessa catástrofe em todos os seus pormenores. Apesar dos avisos e das súplicas de sua mulher, M. Reed achou que não devia renunciar ao projetado passeio, em que veio a encontrar a morte, nas circunstâncias idênticas às percebidas no sonho da criança.
M. Henri de Parville, no seu folhetim científico do Journal des Débats (maio de 1904) refere um, caso afiançado por testemunhos dignos de fé:
“Uma senhora, cujo marido desapareceu sem deixar vestígios e que ela não pôde descobrir apesar de todas as pesquisas a que procedeu, teve um sonho”. Um cãozinho, que por muito tempo havia vivido na sua companhia, mas que o marido levara, aparece-lhe, dá latidos de alegria e cobre-a de carícias. Instala-se lhe ao pé, não tira os olhos dela; depois, passado um momento, levanta-se e começa a arranhar a porta.
Está feita a sua visita e precisa ir-se embora. Ela abre-lhe a porta e, no sonho, segue o animal, que se afasta, correndo; corre também atrás dele e, passado algum tempo, o vê entrar numa casa, cujo andar térreo é ocupado por um café. A rua, a casa e o bairro gravam-se lhe na memória, que conserva a recordação de tudo isso depois de acordada. Preocupada com esse sonho, conta-o a três pessoas da vizinhança, que depois deram testemunho da autenticidade dos fatos. “Decide-se, finalmente, a seguir a pista do cão e encontra o marido na rua e na casa que vira em sonho.”
Os Annales des Sciences Psychiques, de julho de 1905, citava dois sonhos premonitórios acompanhados de circunstâncias que lhe dão caráter muito comovente.
Finalmente, achamos na  Revue de Psychologie de la Suisse Romande, 1905, pág. 379, o caso de um mancebo que se via muitas vezes a si mesmo numa alucinação autoscópica, precipitado do cimo de um rochedo e estendido, ensanguentado e contundido, no fundo de um barranco. Essa premonição fatal realizou-se, ponto por ponto, a 10 de julho de 1904, no monte du Salève, perto de Genebra.
À proporção que nos vamos elevando na ordem dos fenômenos psíquicos, vão-se eles apresentando com maior clareza, com maior rigor e trazem-nos provas mais decisivas da independência e da sobrevivência do Espírito.
As percepções da alma no sono são de duas espécies.
Verificamos primeiramente a visão à distância, a clarividência, a lucidez; vem depois um conjunto de fenômenos designados pelos nomes de  telepatia e  telestesia (sensações e simpatias à distância). Compreende a recepção e transmissão dos pensamentos, das sensações, dos impulsos motrizes. Com esses fatos relacionam-se os casos de desdobramentos e aparições designados pelos nomes de  fantasmas dos vivos. A psicologia oficial teve de verificar esses casos em grande número, sem os explicar 65*.Ver Proceedings da Sociedade de Pesquisa Psíquicas de Londres
 Todos esses fatos ligam-se entre si e formam uma cadeia contínua. Em princípio, constituem, no fundo, um só e mesmo fenômeno, variável na forma e intensidade, isto é, o desprendimento gradual da alma. Vamos seguir esse desprendimento nas suas diversas fases, desde o despertar dos sentidos psíquicos e das suas manifestações em todos os graus até a projeção, à distância, de todo o Espírito, alma e corpo fluídico.
Examinemos primeiramente os casos em que a visão psíquica se exerce com agudeza notável. Citamos alguns nas nossas obras precedentes. Aqui apresentamos um, mais recente, publicado por toda a imprensa londrina.
O desaparecimento da Srta. Holland, processo criminal que apaixonou a Inglaterra, foi explicado por um sonho. A polícia a procurava inutilmente. O acusado, Samuel Douglas, que estava para ser solto, pretendia que ela havia partido para destino desconhecido. Os jornais de Londres publicaram desenhos que representavam a casa em que morava a Srta. Holland e o jardim da mesma casa. Uma criada viu a gravura e exclamou: “Aí está o meu sonho!”, e indicou um lugar, ao pé de uma árvore, dizendo:
“Está ali um cadáver!” Soube-o a polícia e, na presença dos agentes, ela confirmou as suas declarações. Explicou que vira em sonho esse jardim e, no solo, no lugar indicado, um corpo enterrado. A polícia mandou escavar o terreno nesse lugar e nele foi encontrado o cadáver da Srta. Holland. Ficou provado que a criada nunca conhecera essa pessoa nem pusera os pés nesse jardim.
C. Flammarion, na sua obra O Desconhecido e os Problemas Psíquicos, menciona uma série completa de visões diretas, à distância, durante o sono, resultante de um inquérito feito na França sobre os fenômenos dessa ordem.
Vamos referir um caso mais complicado. Os  Annales des Sciences Psychiques, de Paris, setembro de 1905 (pág. 551), contêm a relação circunstanciada e autenticada pelas autoridades legais de Castel di Sangro (Itália), de um sonho macabro, coletivo e verídico
“O guarda rural do Barão Raphaël Corrado viu em sonho, na noite de 3 de março último, seu pai, falecido havia dez anos. Exprobrou-lhe, a ele, aos irmãos e irmãs, o terem-no esquecido e, coisa mais grave, deixarem os seus pobres ossos desenterrados pelos coveiros, abandonados sobre a neve, por trás da torre do cemitério, à mercê dos lobos. A irmã do guarda sonhou exatamente a mesma coisa, e o irmão, muito impressionado, pegou na espingarda e, não obstante  a tempestade de neve que atormentava a região, dirigiu-se para o cemitério, sito num monte que dominava a cidade. Aí, por trás da torre, entre as silvas e por cima da neve, em que havia sinais de patas de lobo, viu ossos humanos.”
Os  Annales dão depois a narrativa circunstanciada do inquérito e das pesquisas feitas pelo juiz de paz.  Estabelecem que os ossos eram, na realidade, os do pai do guarda, que os coveiros, terminado o prazo legal, haviam exumado.  Iam eles transportá-los para o ossuário, à noitinha, quando o frio e a neve os obrigaram a deixar o serviço para o dia seguinte. Os documentos relativos a esse caso, que foi objeto de um processo, estão assinados pelo tabelião, pelo juiz de paz e pelo síndico da localidade. Foram publicadas pelo  Eco del Sangro, de 15 de março de 1905.
O Prof. Newbold, da Universidade da Pensilvânia, relata nos Proceedings of S. P. R., XII, pág. 11, vários exemplos de sonhos, que indicam uma grande atividade da alma durante o sono e dão ensinamentos que vêm do mundo invisível. Entre outros, citaremos o do Dr. Hilprecht, professor de língua assíria na mesma Universidade, que num sonho teve a revelação  de uma inscrição antiga, que até então não havia descoberto. Num sonho mais complexo, em que intervém um sacerdote dos antigos templos de Nippur, dele recebeu a explicação de um enigma de difícil decifração. Foram reconhecidas como exatas  todas as particularidades desse sonho. As indicações do sacerdote versavam sobre pontos de Arqueologia completamente desconhecidos dos seres que vivem na Terra.
Convém notar que em todos esses fatos o corpo do percipiente está em repouso e os seus órgãos físicos estão adormecidos; mas, nele o ser psíquico continua em vigília, em atividade; vê, ouve e comunica, sem o auxílio da palavra, com outros seres semelhantes, isto é, com outras almas.
Esse fenômeno tem caráter geral e dá-se em cada um de nós.
Na transição da vigília para o sono, exatamente no momento em que os nossos meios ordinários de comunicação com o mundo exterior estão suspensos, abrem-se em nós novas saídas para a Natureza e por elas escapa-se uma irradiação mais intensa da nossa visão. Já nisso vemos revelar-se uma nova forma de vida, a vida psíquica, que vai amplificar-se nos outros fenômenos dos quais nos vamos ocupar, provando que existem para o ser humano modos de percepção e de manifestação muito diferentes do dos sentidos materiais.
Depois dos fenômenos de visão no sono natural, vamos apresentar um caso de clarividência no sono provocado.
O Dr. Maxwell, advogado geral no Supremo Tribunal de Bordéus, provoca na Sra. Aguillana, sujet muito sensível, o sono magnético. Ela desprende-se, exterioriza-se, afasta-se em espírito da sua morada. O Dr. Maxwell manda-lhe observar, a  certa distância, o que está fazendo um seu amigo M. B... Eram 10:20 da noite. Damos a palavra ao experimentador 66*:J.Maxxwelll – Les Phenoménes Psychiques, pag.173, F. Alcan, Paris, 1903.
“A médium, com grande surpresa nossa, disse-nos que estava vendo M. B..., meio despido, a passear descalço sobre pedra. Pareceu-me que isso não tinha sentido algum. No dia seguinte ofereceu sê-me ensejo de ver o meu amigo”.
Mostrou-se muito admirado com o que lhe contei e disse-me textualmente: “Ontem, à noite, não me senti bem. Um amigo meu, M. S..., que mora comigo, aconselhou-me que experimentasse o sistema Kneip e instou tanto que,  para satisfazê-lo, fiz pela primeira vez, ontem, à noite, a experiência de passear descalço na pedra fria. Estava efetivamente meio despido quando a fiz. “Eram 10 horas e 20 minutos e passeei durante algum tempo nos degraus da escada, que é de pedra.”
Os casos de clarividência no estado de sonambulismo são numerosos. Vêm relatados em todas as obras e revistas que se ocupam especialmente desses assuntos.
A Médecine Française, de 16 de abril de 1906, refere um fato de clarividência relativo às minas de Courrières. A Sra. Berthe, a vidente consultada, descreveu com exatidão um desabamento na mina e as torturas impostas aos sobreviventes, cuja morte ou libertação ela anunciou.
Ajuntemos dois exemplos recentes:
“O Sr. Louis Cadiou, diretor da Usina de la Grand-Palud, perto de Landerneau (Finistère), tendo desaparecido em fins de dezembro de 1913, não se lhe podiam descobrir os traços, apesar das buscas minuciosas. Das sondagens efetuadas na ribeira do rio Elorn nenhum resultado adveio. Uma vidente, moradora em Nancy, a Sra. Camille Hoffmann, tendo sido consultada, declarou, em estado de sono magnético,  que o cadáver seria encontrado na orla de um bosque vizinho à usina, oculto sob ligeira camada de terra. Por essas indicações, o irmão da vítima descobriu, depois, o corpo em uma situação idêntica à que a vidente tinha descrito.
Todos os jornais, entre outros o Le Matin, de 5 de fevereiro de 1914, relatam pormenorizadamente o caso Cadiou,  que  toda a França acompanhou com apaixonado interesse. Alguns dias depois, produziu-se fenômeno análogo. Havendo-se afogado no Saóne, perto de Màcon, um jovem chamado Charles Chapeland, seu irmão recorreu à Sra. Camille Hoffmann para encontrar o cadáver. Ela assegurou que ele seria lançado pelas águas, 60 dias depois do acidente, perto da portagem de Cormoranche, o que se realizou exatamente 67*. Ver Le Martin, de 23 de Fevereiro de 1914.