Os Quatro Evangelhos
Em 1866, finalmente viriam a público os quatro longos volumes
da obra assinada pelo advogado de Bordeaux Jean Baptiste Roustaing: os quatro
evangelhos.
No prefácio, uma declaração de
gratidão a Kardec por seu livro de estreia:
Li O Livro dos espíritos. Nas primeiras páginas desse volume encontrei
uma moral pura, uma doutrina racional, em harmonia com o espírito e progresso
dos tempos modernos, consoladora para a razão humana.
Como escreveu em cinco anos antes a
Kardec, Roustaing descobrira um mundo novo nas páginas de o livro dos
espíritos: a pluralidade dos mundos, a lei do renascimento – tudo passara a fazer sentido para ele.
Ou melhor: quase tudo. Porque, depois
de reler a obra-prima do mestre e mergulhar
na leitura do livros dos médiuns, uma figura ainda o intrigava: Jesus
Cristo. A “moral sublime” do filho de Deus estava traduzida com clareza e
transparência nos textos de Kardec, mas quais seriam sua origem e natureza
espirituais?
(...) senti a impotência da razão humana para penetrar as
trevas da letra e, desde então, a necessidade de uma revelação nova, de uma
revelação da revelação.
Para surpresa de Kardec e de muitos
de seus aliados, Roustaing transformou este trecho do prefácio em sub título
para seu livro, Os quatro evangelhos – a revelação da revelação, e passou a
proclamar novas verdades com o aval de quatro colaboradores tão influentes
quanto os coautores dos trabalhos de Kardec: os evangelistas Marcos, João,
Mateus e Lucas.
O quarteto teria ditado a ele,
através da médium belga Émilie Collignon, informações preciosas e ainda
inéditas sobre o filho de Deus. Em poucas palavras: Jesus teria vindo à Terra
em um “corpo fluídico” e não “em carne”, e a gravidez de Maria teria acontecido
apenas “em aparência”. Outra notícia atribuída aos contemporâneos de Jesus: a
reencarnação – necessidade para a evolução do homem, segundo Kardec – serviria também
de punição de pecados, castigo divino, e não apenas ao ciclo evolutivo e
virtuoso definido e defendido pelo mestre.
Entre as revelações da revelação, uma
má notícia para os espíritas mais combativos, anunciada no terceiro tomo da
obra de Roustaing, estudioso voraz da bíblia: o futuro espiritual da humanidade
estaria na “igreja do Cristo” e nas mãos do papa, “cheio de humildade, com seu
cajado de viajante”.
Para os espíritas atentos a detalhes o
mais constrangedor era a presença de João Evangelista nestas revelações do
além. Identificado como um dos colaboradores de Kardec em O livro dos espíritos,
ele não poderia, ou deveria, avalizar informações como as expostas em Os quatro
evangelhos.
Na obra de Roustaing, o Deus misericordioso
e do espiritismo era colocado em xeque; a dor de Cristo em sua via crucis era
reduzida a uma encenação (não teria sofrido “na carne” todos os castigos); e o
ciclo fundamental do “nascer, morrer, e progredir sem cessar” também saía
arranhado.
Na edição de Junho de 1866 da Revista
Espírita, Kardec daria seu parecer sobre os quatro volumes publicados por
Roustaing.
Com o cuidado de não mencionar o
termo “revelação da revelação” nem de questionar os poderes da igreja católica,
o codificador da doutrina espírita lançou dúvidas quanto a tese central de Os
quatro evangelhos: a natureza “agênere”, não corporal, de Cristo.
Sem nos pronunciarmos
pró ou contra essa teoria, diremos que ela é pelo menos hipotética, e que, se
um dia fosse reconhecida errada, em
falta de base, todo o edifício desabaria.
Duas linhas depois de declarar que
não o faria, Kardec tomou uma posição contra:
Sem prejulgar essa
teoria, diremos que já foram feitas objeções sérias a ela e que, em nossa
opinião, os fatos (sobre a morte e ressurreição de Cristo) podem ser
perfeitamente explicados sem sair das condições da humanidade corporal.
O diretor da Revista
Espírita, aliás, considerava a obra muito extensa:
Ao nosso ver,
limitando-se ao estritamente necessário, a obra poderia ter sido reduzida a
dois, ou mesmo a um volume, e teria ganho em popularidade.
Conselho de um Best-seller.
Nos bastidores, em conversas com
Amélie e os colaboradores mais leais, Kardec foi menos polido. Roustaing
cometera um erro grave: o de confiar todo o seu texto a uma única médium e, o pior, uma ilustre desconhecida, a
julgar por esta frase do prefácio: “ O trabalho iria ser feito por dois entes
que, oito dias atrás não se conheciam.”
As mensagens atribuídas aos
evangelistas não foram checadas com outros médiuns, e nenhum outro espírito – a
não ser os dos círculos de Émilie Collingnon – fora “ouvido” até a publicação
das 2 mil páginas. O método da “universalidade do ensino dos espíritos”,
definido por Kardec, teria sido ignorado, e o resultado era aquele.
Kardec guardaria na gaveta, até a sua
morte, mensagens do além bastante diferentes das divulgadas pelo advogado de Bordeaux.
Em uma delas, intitulada “Futuro do espiritismo”, o autor espiritual não
deixava dúvidas quanto ao poder e à responsabilidade do espiritismo:
- Cabe-nos refletir os
erros da história e depurar a religião do Cristo, transformada, nas mãos dos
padres, em comércio e em vil tráfico. Instituirá o espiritismo a verdadeira
religião, a religião natural, a que parte do coração e vai diretamente para
Deus, sem dependência da obra da sotaina ou dos degraus do altar.
A mensagem terminava com um vaticínio
nada condizente com Os quatro evangelhos. “A igreja atira-se, por si mesma, ao
precipício.”
*(Segue em anexo a publicação da RE de 1866, que não está publicado na obra de Marcel S. Maior).
*Os Evangelhos
explicados pelo Sr Roustaing
Revista Espírita, junho
de 1866
Esta obra compreende a explicação e a
interpretação dos Evangelhos, artigo por artigo, com a ajuda de comunicações
ditadas pelos Espíritos. É um trabalho considerável e que tem, para os
Espíritas, o mérito de não estar, em nenhum ponto, em contradição com a
doutrina ensinada pelo Livro dos Espíritos e o dos Médiuns. As partes correspondentes
às que tratamos no Evangelho Segundo o Espiritismo o são em sentido análogo. Aliás,
como nos limitamos às máximas morais que, com raras exceções, são claras, estas
não poderiam ser interpretadas de diversas maneiras; assim, jamais foram
assunto para controvérsias religiosas. Por esta razão é que por aí começamos, a
fim de ser aceito sem contestação, esperando, quanto ao resto, que a opinião
geral estivesse mais familiarizada com a ideia espírita.
O autor desta nova obra julgou dever
seguir um outro caminho. Em vez de proceder por gradação, quis atingir o fim de
um salto. Assim, tratou certas questões que não tínhamos julgado oportuno abordar
ainda e das quais, por consequência, lhe deixamos a responsabilidade, como aos
Espíritos que as comentaram. Consequente com o nosso princípio, que consiste em
regular a nossa marcha pelo desenvolvimento da opinião, até nova ordem não daremos
as suas teorias nem aprovação nem desaprovação, deixando ao tempo o trabalho de
as sancionar ou as contraditar. Convém, pois, considerar essas explicações como
opiniões pessoais dos Espíritos que as formularam, opiniões que podem ser
justas ou falsas e que, em todo o caso, necessitam da sanção do controle
universal, e, até mais ampla confirmação, não poderiam ser consideradas como
partes integrantes da doutrina espírita.
Quando tratarmos destas questões
fá-lo-emos decididamente. Mas é que então teremos recolhido documentos bastante
numerosos nos ensaios dados "de todos os lados" pelos Espíritos, a
fim de poder falar afirmativamente e ter a certeza de estar "de acordo com
a maioria". É assim que temos feito, todas as vezes que se trata de formular
um princípio capital. Dissemo-lo cem vezes, para nós a opinião de um Espírito,
seja qual for o nome que traga, tem apenas o valor de uma opinião individual.
Nosso critério está na concordância universal, corroborada por uma rigorosa
lógica, para as coisas que não podemos controlar com os próprios olhos. De que
nos serviria dar prematuramente uma doutrina como uma verdade absoluta se, mais
tarde, devesse ser combatida pela generalidade dos Espíritas?
Dissemos que o livro do Sr. Roustaing
não se afasta dos princípios do Livro dos Espíritos e do dos Médiuns. Nossas observações
são feitas sobre a aplicação desses mesmos princípios à interpretação de certos
fatos. É assim, por exemplo, que dá ao Cristo, em vez de um corpo carnal, um
corpo fluídico concretizado, com todas as aparências da materialidade e de fato
um "agênere". Aos olhos dos homens que não tivessem então podido compreender
sua natureza espiritual, deve ter passado "em aparência", expressão
incessantemente repetida no curso de toda a obra, por todas as vicissitudes da
humanidade. Assim seria explicado o mistério de seu nascimento: Maria teria
tido todas as aparências da gravidez. Posto como premissa e pedra angular, este
ponto é a base em que se apóia para a explicação de todos os fatos
extraordinários ou miraculosos da vida de Jesus.
Nisso nada há de materialmente
impossível para quem quer que conheça as propriedades do envoltório
perispiritual. Sem nos pronunciarmos pró ou contra essa teoria, diremos que ela
é, pelo menos, hipotética, e que se um dia fosse reconhecida errada, em falta
de base todo o edifício desabaria. Esperamos, pois, os numerosos comentários que
ela não deixará de provocar da parte dos Espíritos, e que contribuirão para
elucidar a questão. Sem a prejulgar, diremos que já foram feitas objeções sérias
a essa teoria e que, em nossa opinião, os fatos podem perfeitamente ser
explicados sem sair das condições da humanidade corporal.
Estas observações, subordinadas à
sanção do futuro, em nada diminuem a importância da obra que, ao lado de coisas
duvidosas, em nosso ponto de vista, encerra outras incontestavelmente boas e verdadeiras,
e será consultada com fruto pelos Espíritas sérios.
Se o fundo de um livro é o principal,
a forma não é para desdenhar e contribui com algo para o sucesso. Achamos que
certas partes são desenvolvidas muito extensamente, sem proveito para a
clareza. A nosso ver, se, limitando-se ao estritamente necessário a obra
poderia ter sido reduzida a dois, ou mesmo a um só volume e teria ganho em
popularidade.