free counters free counters

domingo, 24 de novembro de 2013

parte do livro de Marcel Souto Maior – Kardec a biografia.


 

Os Quatro Evangelhos 

Em 1866, finalmente viriam a público os quatro longos volumes da obra assinada pelo advogado de Bordeaux Jean Baptiste Roustaing: os quatro evangelhos.
No prefácio, uma declaração de gratidão a Kardec por seu livro de estreia:
Li O Livro dos espíritos. Nas primeiras páginas desse volume encontrei uma moral pura, uma doutrina racional, em harmonia com o espírito e progresso dos tempos modernos, consoladora para a razão humana.
Como escreveu em cinco anos antes a Kardec, Roustaing descobrira um mundo novo nas páginas de o livro dos espíritos: a pluralidade dos mundos, a lei do renascimento – tudo passara a fazer sentido para ele.  
Ou melhor: quase tudo. Porque, depois de reler a obra-prima do mestre e mergulhar  na leitura do livros dos médiuns, uma figura ainda o intrigava: Jesus Cristo. A “moral sublime” do filho de Deus estava traduzida com clareza e transparência nos textos de Kardec, mas quais seriam sua origem e natureza espirituais?
(...) senti a impotência da razão humana para penetrar as trevas da letra e, desde então, a necessidade de uma revelação nova, de uma revelação da revelação.
Para surpresa de Kardec e de muitos de seus aliados, Roustaing transformou este trecho do prefácio em sub título para seu livro, Os quatro evangelhos – a revelação da revelação, e passou a proclamar novas verdades com o aval de quatro colaboradores tão influentes quanto os coautores dos trabalhos de Kardec: os evangelistas Marcos, João, Mateus e Lucas.
O quarteto teria ditado a ele, através da médium belga Émilie Collignon, informações preciosas e ainda inéditas sobre o filho de Deus. Em poucas palavras: Jesus teria vindo à Terra em um “corpo fluídico” e não “em carne”, e a gravidez de Maria teria acontecido apenas “em aparência”. Outra notícia atribuída aos contemporâneos de Jesus: a reencarnação – necessidade para a evolução do homem, segundo Kardec – serviria também de punição de pecados, castigo divino, e não apenas ao ciclo evolutivo e virtuoso definido e defendido pelo mestre.
Entre as revelações da revelação, uma má notícia para os espíritas mais combativos, anunciada no terceiro tomo da obra de Roustaing, estudioso voraz da bíblia: o futuro espiritual da humanidade estaria na “igreja do Cristo” e nas mãos do papa, “cheio de humildade, com seu cajado de viajante”.
Para os espíritas atentos a detalhes o mais constrangedor era a presença de João Evangelista nestas revelações do além. Identificado como um dos colaboradores de Kardec em O livro dos espíritos, ele não poderia, ou deveria, avalizar informações como as expostas em Os quatro evangelhos.
Na obra de Roustaing, o Deus misericordioso e do espiritismo era colocado em xeque; a dor de Cristo em sua via crucis era reduzida a uma encenação (não teria sofrido “na carne” todos os castigos); e o ciclo fundamental do “nascer, morrer, e progredir sem cessar” também saía arranhado.
Na edição de Junho de 1866 da Revista Espírita, Kardec daria seu parecer sobre os quatro volumes publicados por Roustaing. 

Com o cuidado de não mencionar o termo “revelação da revelação” nem de questionar os poderes da igreja católica, o codificador da doutrina espírita lançou dúvidas quanto a tese central de Os quatro evangelhos: a natureza “agênere”, não corporal, de Cristo.
Sem nos pronunciarmos pró ou contra essa teoria, diremos que ela é pelo menos hipotética, e que, se um dia fosse reconhecida errada, em falta de base, todo o edifício desabaria.
Duas linhas depois de declarar que não o faria, Kardec tomou uma posição contra:
Sem prejulgar essa teoria, diremos que já foram feitas objeções sérias a ela e que, em nossa opinião, os fatos (sobre a morte e ressurreição de Cristo) podem ser perfeitamente explicados sem sair das condições da humanidade corporal.
O diretor da Revista Espírita, aliás, considerava a obra muito extensa:
Ao nosso ver, limitando-se ao estritamente necessário, a obra poderia ter sido reduzida a dois, ou mesmo a um volume, e teria ganho em popularidade.

Conselho de um Best-seller.

Nos bastidores, em conversas com Amélie e os colaboradores mais leais, Kardec foi menos polido. Roustaing cometera um erro grave: o de confiar todo o seu texto a uma única  médium e, o pior, uma ilustre desconhecida, a julgar por esta frase do prefácio: “ O trabalho iria ser feito por dois entes que, oito dias atrás não se conheciam.”
As mensagens atribuídas aos evangelistas não foram checadas com outros médiuns, e nenhum outro espírito – a não ser os dos círculos de Émilie Collingnon – fora “ouvido” até a publicação das 2 mil páginas. O método da “universalidade do ensino dos espíritos”, definido por Kardec, teria sido ignorado, e o resultado era aquele.
Kardec guardaria na gaveta, até a sua morte, mensagens do além bastante diferentes das divulgadas pelo advogado de Bordeaux. Em uma delas, intitulada “Futuro do espiritismo”, o autor espiritual não deixava dúvidas quanto ao poder e à responsabilidade do espiritismo:
- Cabe-nos refletir os erros da história e depurar a religião do Cristo, transformada, nas mãos dos padres, em comércio e em vil tráfico. Instituirá o espiritismo a verdadeira religião, a religião natural, a que parte do coração e vai diretamente para Deus, sem dependência da obra da sotaina ou dos degraus do altar.
A mensagem terminava com um vaticínio nada condizente com Os quatro evangelhos. “A igreja atira-se, por si mesma, ao precipício.”

*(Segue em anexo a publicação da RE de 1866, que não está publicado na obra de Marcel S. Maior).

*Os Evangelhos explicados pelo Sr Roustaing

Revista Espírita, junho de 1866

Esta obra compreende a explicação e a interpretação dos Evangelhos, artigo por artigo, com a ajuda de comunicações ditadas pelos Espíritos. É um trabalho considerável e que tem, para os Espíritas, o mérito de não estar, em nenhum ponto, em contradição com a doutrina ensinada pelo Livro dos Espíritos e o dos Médiuns. As partes correspondentes às que tratamos no Evangelho Segundo o Espiritismo o são em sentido análogo. Aliás, como nos limitamos às máximas morais que, com raras exceções, são claras, estas não poderiam ser interpretadas de diversas maneiras; assim, jamais foram assunto para controvérsias religiosas. Por esta razão é que por aí começamos, a fim de ser aceito sem contestação, esperando, quanto ao resto, que a opinião geral estivesse mais familiarizada com a ideia espírita.
O autor desta nova obra julgou dever seguir um outro caminho. Em vez de proceder por gradação, quis atingir o fim de um salto. Assim, tratou certas questões que não tínhamos julgado oportuno abordar ainda e das quais, por consequência, lhe deixamos a responsabilidade, como aos Espíritos que as comentaram. Consequente com o nosso princípio, que consiste em regular a nossa marcha pelo desenvolvimento da opinião, até nova ordem não daremos as suas teorias nem aprovação nem desaprovação, deixando ao tempo o trabalho de as sancionar ou as contraditar. Convém, pois, considerar essas explicações como opiniões pessoais dos Espíritos que as formularam, opiniões que podem ser justas ou falsas e que, em todo o caso, necessitam da sanção do controle universal, e, até mais ampla confirmação, não poderiam ser consideradas como partes integrantes da doutrina espírita.
Quando tratarmos destas questões fá-lo-emos decididamente. Mas é que então teremos recolhido documentos bastante numerosos nos ensaios dados "de todos os lados" pelos Espíritos, a fim de poder falar afirmativamente e ter a certeza de estar "de acordo com a maioria". É assim que temos feito, todas as vezes que se trata de formular um princípio capital. Dissemo-lo cem vezes, para nós a opinião de um Espírito, seja qual for o nome que traga, tem apenas o valor de uma opinião individual. Nosso critério está na concordância universal, corroborada por uma rigorosa lógica, para as coisas que não podemos controlar com os próprios olhos. De que nos serviria dar prematuramente uma doutrina como uma verdade absoluta se, mais tarde, devesse ser combatida pela generalidade dos Espíritas?
Dissemos que o livro do Sr. Roustaing não se afasta dos princípios do Livro dos Espíritos e do dos Médiuns. Nossas observações são feitas sobre a aplicação desses mesmos princípios à interpretação de certos fatos. É assim, por exemplo, que dá ao Cristo, em vez de um corpo carnal, um corpo fluídico concretizado, com todas as aparências da materialidade e de fato um "agênere". Aos olhos dos homens que não tivessem então podido compreender sua natureza espiritual, deve ter passado "em aparência", expressão incessantemente repetida no curso de toda a obra, por todas as vicissitudes da humanidade. Assim seria explicado o mistério de seu nascimento: Maria teria tido todas as aparências da gravidez. Posto como premissa e pedra angular, este ponto é a base em que se apóia para a explicação de todos os fatos extraordinários ou miraculosos da vida de Jesus.
Nisso nada há de materialmente impossível para quem quer que conheça as propriedades do envoltório perispiritual. Sem nos pronunciarmos pró ou contra essa teoria, diremos que ela é, pelo menos, hipotética, e que se um dia fosse reconhecida errada, em falta de base todo o edifício desabaria. Esperamos, pois, os numerosos comentários que ela não deixará de provocar da parte dos Espíritos, e que contribuirão para elucidar a questão. Sem a prejulgar, diremos que já foram feitas objeções sérias a essa teoria e que, em nossa opinião, os fatos podem perfeitamente ser explicados sem sair das condições da humanidade corporal.
Estas observações, subordinadas à sanção do futuro, em nada diminuem a importância da obra que, ao lado de coisas duvidosas, em nosso ponto de vista, encerra outras incontestavelmente boas e verdadeiras, e será consultada com fruto pelos Espíritas sérios.


Se o fundo de um livro é o principal, a forma não é para desdenhar e contribui com algo para o sucesso. Achamos que certas partes são desenvolvidas muito extensamente, sem proveito para a clareza. A nosso ver, se, limitando-se ao estritamente necessário a obra poderia ter sido reduzida a dois, ou mesmo a um só volume e teria ganho em popularidade.